CAPITU
Eles
se amavam ternamente,
aspiravam
à mesma essência;
sendo
dois, eram um:
no
amor, eram um só.
William Shakespeare,
in “A fênix e a
pomba”
Votre maîtresse,
devenue votre amie, intime, vous donne d’autres plaisirs, les plaisirs de la
vieillesse. C’est une fleur qui, après avoir été rose le matin, dans la saison
des fleurs, se change en une fruit delicieux le soir, quand les roses ne sont
plus la saison.
[Sua amante,
que se tornou sua amiga íntima, dá-lhe outros prazeres, os prazeres da velhice. É uma flor que,
após se abrir como uma rosa pela manhã, na primavera,
transforma-se num fruto delicioso à noite, fora da
estação.]
Stendhal,
“De l’amour”,
LIX
Quando me perguntava se sonhara com ela na véspera,
e eu dizia que não, ouvia-lhe contar que sonhara comigo, e eram aventuras
extraordinárias, que subíamos ao Corcovado pelo ar, que dançávamos na lua, ou
então que os anjos vinham perguntar-nos pelos nomes, a fim de os dar a outros
anjos que acabavam de nascer. Em todos esses sonhos andávamos unidinhos. Os que
eu tinha com ela não eram assim, apenas reproduziam a nossa familiaridade, e
muita vez não passavam da simples repetição do dia, alguma frase, algum gesto.
Também eu os contava. Capitu um dia notou a diferença, dizendo que os dela eram
mais bonitos que os meus; eu, depois de certa hesitação, disse-lhe que eram
como a pessoa que sonhava... Fez-se cor de pitanga.
Machado de
Assis,
Dom Casmurro, Capítulo XII (Na varanda)
CAPÍTULO I
Voltei-me para ela; Capitu tinha os olhos no chão.
Ergueu-os logo, devagar, e ficamos a olhar um para o outro...
Capítulo XIV (A
inscrição)
Hoje encontrei Bentinho. Ele não falou
comigo, mas, no final, me disse que iria embora para não morrer de melancolia.
Achei sua atitude meio súbita, segurando-me
pelo braço para dizer isso, num último fôlego, quase se escondendo da mãe.
O que quis dizer? Eu nada fiz além de
olhar para ele quando me cumprimentou. E, mesmo assim, saiu de perto como quem
foge do diabo.
Ah, esses homens apressados em dizer o
que sentem e nem ouvem o que pensamos! Depois se queixam que os deixamos
sozinhos!
Antes brincávamos sem medo, saltando de
um lado e de outro, e todas as brincadeiras pareciam iguais. Mas nada me
comovia mais que o modo como ele me olhava. Sempre com os olhos amendoados, de
soslaio, tentando não me encarar.
Quando pegávamos numa estripulia, não
parávamos até estarmos exaustos. Isso era nossa amizade, sabermo-nos iguais, em
força, vontade e determinação. Não havia nada que ele quisesse que eu não
pudesse fazer também.
9/04/2013
– 4h34
CAPÍTULO II
Com
que então eu amava Capitu, e Capitu a mim?
Capítulo XII (Na
varanda)
Amor, amor, amor. Haveria outra
explicação senão amor? O que faz com que se pense que a vida começa e acaba
numa pessoa? Que tudo que está à volta dela pertence a ela, como ela pertence
às coisas às quais está inserida?
Suas mãos eram de veludo, seu nariz como
de uma estátua, e o tempo que passava a olhar em torno equivalia à órbita da
Terra. Nenhum meteoro conseguiria abalar tal movimento.
As manhãs eram cheias de ruídos. O café
era sempre servido à mesma hora, o cheiro do leite quente na jarra de
porcelana, a colher espetada no açucareiro e o bolo de laranja recém-cortado
eram sinais de que a vida recomeçava de manhã.
Os raios de sol nem tinham esquentado lá
fora, e já pensávamos no que fazer até a hora do almoço. Caçar minhocas ou
grilos. Um mundo inteiro pulsava como se libertássemos essa essência que só descobrimos
ao abrir um frasco de perfume novo.
Bentinho era a melhor companhia para
todas as horas. E, mesmo assim, eu não achava que ele fosse a melhor pessoa do
mundo. Tinha momentos em que encasquetava de tal maneira, que era impossível
demovê-lo.
Ler, para ele, era um passatempo. Para
mim, o deleite das minhas tardes livres. Mas o que mais me absorvia, era
ouvi-lo lendo. O universo se reduzia à sua voz, e sua voz somente movia as
estrelas.
9/04/2013
– 5h54
CAPÍTULO III
Como vês, Capitu, aos quatorze anos, tinha já ideias
atrevidas, muito menos que outras que lhe vieram depois; mas eram só atrevidas
em si, na prática faziam-se hábeis, sinuosas, surdas, e alcançavam o fim
proposto, não de salto, mas aos saltinhos.
Capítulo XVIII
(Um plano)
A frugalidade não é um defeito de
caráter, mas antes uma contenção. Não é preciso fazer muito para se obter o
melhor resultado. Assim eram os dias, nas tardes quentes de verão, quando não
havia nada a fazer, senão esperar o lanche ser servido pontualmente às cinco.
Bentinho andava sempre vestido com seu
laço no pescoço, a camisa muito branca para dentro das calças, e um colete
curto que remetia aos toureiros de Espanha. Já o via enfrentando um touro
imaginário, numa arena impossivelmente branca, a espetar o dorso do animal com
lanças negras.
Nada disso mudava os hábitos da casa. Eu
não fazia outra coisa, senão brincar com minhas bonecas e dizer-lhes exatamente
o que fazer, assim como diziam a mim: “Penteie os cabelos”. “Sente-se direito”.
“Não fale alto”.
Viver não era exatamente uma diversão,
por isso esperávamos a hora de sair para tomar sol, quando podíamos ir a
qualquer parte dentro do jardim que fazia fundos com a floresta. Ali viviam
seres inimagináveis, com olhos vivos, a nos observar.
Mas não havia outro instante mais
maravilhoso do que quando Bentinho segurava firme a minha mão e me puxava para
fora.
9/04/2013
– 11h11
CAPÍTULO IV
Os olhos continuaram a dizer cousas infinitas, as
palavras de boca é que nem tentavam sair, tornavam ao coração caladas como
vinham...
Capítulo XIV (A
inscrição)
“Como dói não ouvir sua voz”, pensei
naqueles dias, deitada no quarto.
Adoeci naquela semana, com uma gripe
catarrenta que não me largava. Fiquei estremunhada e infeliz, pensando que iria
acabar o mundo. Mas o que mais me incomodava era não poder ver Bentinho, nem
conversar com ele, nem ouvir sua voz, tímida e firme, lendo os parágrafos de um
livro.
Eu sentia falta de ouvi-lo falar, de sua
voz pausada e suave, do jeito de esfregar o nariz quando fungava. Bentinho
tinha um jeito de quem está sempre aprontando. Todo menino é assim. E eu me
divertia com isso, porque ele só brincava comigo e eram minhas todas as suas
horas.
Qualquer história me animava, não
precisava nem ser nova, as que ele já havia lido eram boas. Cada conto de fada
se animava mais que o normal quando chegava às partes mais conhecidas.
Bentinho lia com a vivacidade de um
orador. Por vezes, erguia a mão para gesticular enfaticamente, enquanto falava
os diálogos. Cada uma dessas passagens nos animava a seguir lendo mais um pouco,
até nos chamarem para jantar.
Os mais velhos não entendem o que pensam
as crianças quando estão a sós. Eles pensam coisas de adultos. Pensamos só o
que pensam as crianças. Brincadeiras, folguedos, como matar o tempo. Ter uma
tarde inteira para si que durava uma eternidade. Tocar o piano, ensaiar as
escalas, ler as partituras amarelecidas, passar algumas horas distraídos, sem
pensar em nada.
Se não fossem as nossas atividades
diárias, nada teríamos para fazer. A tarde modorrenta se arrastava até a noite,
quando os candelabros eram acesos para acomodar as pessoas em seus afazeres.
Dormíamos cedo e o sono vinha nos cobrir, como uma bênção dominical.
9/04/2013
– 16h26
CAPÍTULO V
A imagem de Capitu ia comigo, e a minha imaginação,
assim como lhe atribuíra lágrimas, há pouco, assim lhe encheu a boca de riso
agora; vi-a escrever no muro, falar-me, andar à volta, com os braços no ar;
ouvi distintamente o meu nome, de uma doçura que me embriagou, e a voz dela.
Capítulo XXX (O
Santíssimo)
Bentinho e eu éramos as asas de uma
mesma borboleta, presas num corpo esguio a voltear pelo parque. Subíamos e
descíamos das árvores, comíamos frutas no pé, e contávamos os paralelepípedos
para, logo depois, perdermos a conta.
Fazíamos a maior festa por nada, e a
vida ficava sem graça quando um não podia vir brincar. Os pássaros dividem o
ninho cada um se sentando sobre os ovos por vez. Nós também revezávamos as
brincadeiras como quem troca de assento, e tudo parecia estar na mais perfeita
ordem.
Eu sabia que Bentinho me amava pelo modo
como esperava por mim. Ficava ali de prontidão, muito sério, sem dizer palavra.
E assim que eu apontava na porta, abria um sorriso de par em par, que só se
desmanchava quando eu me ia.
Tínhamos segredos que não contávamos um ao
outro, e não contávamos a mais ninguém. Bentinho me segredava seus medos de
coisas que poderiam não dar certo, coisas que ele havia esquecido, e que não
poderia esquecer, como erros de cálculo.
Eu não queria que ele soubesse que não
tinha um tipo de roupa que deveria ter por ser caro, e usava a que tivesse. Eu
não podia pôr a cada domingo um chapéu diferente. Era sempre o mesmo, sem me
importar. Vaidade não era um componente da nossa equação.
10/04/2013
– 3h11
CAPÍTULO VI
Capitu
preferia tudo ao seminário.
Capítulo XXXI
(As curiosidades de Capitu)
A missa aos domingos era um compromisso
religioso e social. Nem pensar em faltar a uma delas. Não havia desculpa possível,
nem cansaço, nem gripe – só se estivéssemos à beira da morte.
Bentinho se persignava como eu, e
ficávamos os dois em silêncio, fazendo de conta que os anjos tomavam conta de
nós. Assim tínhamos a certeza de estar vivendo um instante celestial. O céu dos
homens tinha de ser igual ao Céu de Deus.
Eu cobria a cabeça com um véu, e levava
o terço e o missal. Minha mãe me puxava pela mão para eu não me perder. Àquela
altura, eu conhecia o caminho, não me perderia de jeito nenhum. Mas o medo que
eu me desviasse e fosse para outro lugar devia ser grande.
As crianças sentavam-se na frente, perto
dos pais. Todos nós já havíamos feito a primeira comunhão. Saíamos juntos,
Bentinho e eu, para receber a hóstia. O padre olhava para nós como se
estivéssemos fazendo algo errado. Mas não havia nada de errado conosco.
As pessoas mais velhas sempre imaginam o
que não devem. Se não fosse por isso, não dariam o mau exemplo.
11/04/2013
– 2h25
CAPÍTULO VII
Capitu era Capitu, isto é, uma criatura mui
particular, mais mulher do que eu era homem.
Capítulo XXXI
(As curiosidades de Capitu)
Minhas palavras eram só minhas, e eu as
dizia a Bentinho, que me ouvia. Eu sussurrava vários nomes para chamá-lo, e ele
fazia de conta que entendia. Tudo que eu pensava virava palavra, sem importar o
mistério. Ele dizia que me adorava, e eu que o adorava também.
Por mais que o tempo passasse, nada
parecia mudar. Nem de dia, nem de noite, a vida era outra. Quando chovia,
chovia. Quando fazia sol, fazia sol. E isso não mudava nosso humor, nem nos
fazia sermos outros.
Eu prestava atenção em suas sobrancelhas,
se estavam franzidas ou não. Se estivessem, ele estaria pensando, se não
estivessem, não. Por vezes, eu o pegava olhando para mim, distraído, como se
estivesse sonhando acordado. Eu perguntava: “Que tens?” Ele respondia: “Nada,
não”. Mas eu sabia ser mentira, pois ele não sabia mentir. Ficava logo corado,
com medo que eu visse.
O medo, Bentinho dizia, era seu maior
pavor. Tinha medo de sentir medo. E fazia tudo para se firmar em suas opiniões.
Não queria ser pego em flagrante.
Tinha o cuidado de pousar a xícara
quando bebia chá. Lentamente sorvia a infusão, e depois depositava-a sobre o
pires sem fazer barulho. Tal cuidado só me mostrava o quanto estava atento.
Atento a mim. Atento em me ouvir. Em me ouvir respirar.
O silêncio o atormentava, pois tinha
medo de ficar só. “Só nunca”, ele dizia. Eu acreditava nele, porque jamais
mentiria para mim.
13/04/2013
– 1h00
CAPÍTULO VIII
Tudo era matéria às curiosidades de Capitu.
Capítulo XXXII
(Olhos de ressaca)
A vida só se explica em suas pausas.
Tudo que fazemos é antecedido por uma enorme espera. Contamos os dias até a
Páscoa, o Natal, o dia de Santo Antônio, de São João, todos os dias santos que
guardamos, as missas em que celebramos o Pentecostes, o Sábado de Aleluia, de Todos
os Santos e Finados.
Ao chegar o dia que tanto esperamos, ele
passa rápido demais. Nem saboreamos tão bem aquilo que almejamos por estarmos
mais preocupados em chegar lá e, ao atingir nosso objetivo, sequer o
desfrutamos.
Bentinho e eu sabíamos passar o tempo
juntos. Tudo era mais divertido e diverso. Os minutos de silêncio só eram
quebrados por nossa respiração. Eu suspirava por morrer de ansiedade. Queria
logo acabar com a brincadeira, mas não queria ser a primeira a desistir, e Bentinho
tinha uma imensa capacidade de ficar imóvel. Toda vez ele ganhava de mim.
Minhas orações eu dizia em voz alta para
que ele me ouvisse rezando, e ele sempre sussurrava seus pedidos a Deus para
que ninguém soubesse, mas eu sabia o que ele mais queria: ser feliz todos os
dias.
Nasci depois de Bentinho e, quando dei
por mim, ele já estava ali, me olhando. Olhava-me tanto, sem que eu soubesse
por quê. Como sempre vivi com ele por perto, não saberia viver sem ele. E todos
os meus dias eram um contínuo reviver da mesma surpresa: o amor de Bentinho por
mim.
13/04/2013
– 16h26
CAPÍTULO IX
Grande foi a sensação do beijo; Capitu ergueu-se,
rápida, eu recuei até a parede com uma espécie de vertigem, sem fala, os olhos
escuros.
Capítulo XXXIII
(O penteado)
O beijo! Nosso beijo foi um encontro de
suspiros. Suspiramos, enquanto os lábios se tocavam. Viver após foi um
suplício. Queria voltar a beijá-lo, como se as bocas só existissem doadas.
Depois disso, nos separamos. Trocamos
juras de amor tão longas que duravam a vida inteira. “Tu me amas?” “Eu te amo”.
O suspense dizia mais que todas as palavras escritas. Entender em silêncio.
Essa é a outra razão do beijo. Beija-se quando não há mais nada a dizer ou não
se consegue dizer mais nada.
A vida flui novamente entre as pedras do
riacho e as margens ficam assim cheias, como encantadas. O barulho da água
lembra o suspiro dos beijos, ai! Como fluir e deixar fluir, se tudo dentro de
mim se alvoroçava?
O que eram seus olhos depois do beijo? O
que eram suas mãos segurando as minhas? O que eram suas palavras entrecortadas
e medrosas, sem saber o que dizer? Resolvi o impasse. Disfarcei, para que tudo
passasse, para que se acalmasse, ou se alterasse de vez. Aquilo era mais
importante do que todas as notícias do Reino.
O carinho de suas palavras e do seu
olhar me deu a certeza que eu precisava. Eu não iria passar. O juramento do
poço selou a nossa cumplicidade. Eu haveria de ser feliz por Bentinho me amar
assim.
16/04/2013
– 10h33
CAPÍTULO X
Mas juremos por outro modo; juremos que nos havemos
de casar um com outro, haja o que houver.
Capítulo XLVIII
(Juramento do poço)
A Bentinho, eu dizia todas as coisas
possíveis, e as impossíveis deixava para desvendarmos juntos. Se eu me
esquecesse de mim, sabia que ele me lembraria quem sou. As surpresas são
descobertas que não adiamos. Tudo tem um benefício e um peso. O achado tem um
custo. O custo é arcar com a descoberta que se faz sozinho.
Nem todas as palavras são de amor. Há as
palavras de infortúnio, de medo, de sarcasmo. Eu mesma não saberia dizer coisas
terríveis. Repudio tudo que me cause horror. As gentes andam assustadas com
qualquer coisa que se diga. Assim, deixar de cumprir uma promessa pode-nos
custar o céu.
Eu queria adivinhar o futuro, pois só
assim sossegaríamos o coração. Os sustos por que passamos são montanhas russas
de um parque abandonado. O trem-fantasma de nossa existência vive povoado de
assombros. E me assusto com a minha própria sombra.
Pego o bordado e tento alinhavar meus
desejos. Este ponto quer dizer que ele me ama, aquele quer dizer que ele vem
logo, e mais este que ele jamais irá embora. O que quer que pense trará um
resultado. A vida poderia ser só de flores e nós a regá-las. Mas as tormentas
fazem parte dos dias e tudo depende de como amanhecemos.
Bentinho e eu prometemos o mundo um para
o outro, e assim estava bem. A promessa de Dona Glória para que ele fosse para
o seminário não contava para nós, só as que fizemos juntos. Acontecesse o que
acontecesse, iríamos nos casar. Haveria um momento no futuro em que isso seria
possível, e contávamos com o destino como uma coisa certa e tangível, como se
pudéssemos determinar o que iríamos fazer dali para frente.
17/04/2013
– 16h29
CAPÍTULO XI
A
pequena é uma desmiolada; o pai faz que não vê
Capítulo III (A
denúncia)
Chamaram-me descabeçada. Ora,
descabeçada é quem não tem cabeça. É claro que a tenho, senão andaria por aí a
assustar as pessoas. Mas, se for o sentido figurado, descabeçada é quem não
pensa, e eu penso, como penso em tudo que faço e tenho de fazer, mesmo que me
custe.
Às vezes, me mofo de fazer alguma coisa
e deixo para lá. Ninguém há de me obrigar a nada que eu não queira. Se não me
sinto bem, digo isso à minha mãe, que cuida de mim e não me contraria. Senão,
peço a papai que me ajude. Assim não deixo de cumprir com algo que não queira
fazer.
Obrigações são chateações impostas para
nos testar. Tudo que não é feito do nosso jeito tem o modo de mais alguém.
Alguém dita as regras e temos de segui-las. Então dito as minhas regras para
segui-las também, mas só eu mesma. Quem não tem as suas regras vive de acordo
com as regras dos outros. Mas, mesmo assim, tem-se de ter bom senso. Ninguém
está livre de erros, mas quanto menos errar, melhor.
Um dia, me perguntaram se eu estava
fazendo curso para santa. Não, claro que não. Mas santas não fazem tudo certo,
apenas cometem menos erros e depois são canonizadas. O céu deve estar cheio de
mulheres puras que não fizeram nada na vida, senão emendar erros alheios. E os
homens, esses que se lixam para os outros, devem ir direto para o inferno, pois
lá é o lugar deles.
Bentinho era puro. Tão puro quanto uma
flor. Agradava à mãe, e depois era gentil com meu pai. Havia tanta beleza em
seus gestos que eu só me admirava. Ninguém era mais cândido que ele. Por isso,
se chamava Bento: abençoado, beatificado, aquele que recebeu todas as bênçãos e
depois as distribui por altruísmo.
17/04/2013
– 16h58
CAPÍTULO XII
O
beijo de Capitu fechava-me os lábios.
Capítulo XXXIV
(Sou homem!)
A delícia de um sorriso é seu próprio
contentamento. O dia se alonga só se for nosso. Temos de nos entregar à beleza,
pois não há nada além dela. Perfeição tem nome e forma. As silhuetas. Amanhã,
amanhã, amanhã...
O pássaro voa sem trégua. Nosso andar despreocupado.
Os rostos descrevem pensamentos. As ações se somam a eles e tudo se torna um
tormento. Livre de antigas intrigas, de pessoas nefastas, de velhos medos, de
bobagens imensas, coisas que não fazem, nem nunca fizeram sentido, mas que só
agora, só aqui se esclarecem.
Há um escapismo em pensar que outro lugar
seja melhor que aquele onde estamos, porém sempre pensamos em um lugar onde não
estamos, mas desejamos estar, agora, em breve, ou daqui a algum tempo. Não
devemos nunca renunciar a um sonho. Se renunciarmos, não terá sido sonho e,
sim, ilusão.
Viajar é um destino. Como ficar também o
é. Estamos sempre indo de um lugar para outro, em constante movimento, levando
ou trazendo coisas ou pessoas, buscando alguém ou algo, indo atrás do que
queremos descobrir: um lugar, uma pessoa, uma ideia, um livro, um objeto, um
talismã, uma resposta, atrás de algo que complete nosso conhecimento sobre o
que já sabemos, ou o que nos falta para seguir em frente, em outras buscas
incansáveis.
Assim vivíamos Bentinho e eu.
18/04/2013
– 2h15
CAPÍTULO XIII
O bonito é que cada um de nós queria agora as culpas
para si, e pedíamos reciprocamente perdão.
Capítulo XLVI
(As pazes)
Há dias que parecem nuvens. Passam
soprados pelo vento. As horas nem parecem existir.
A ansiedade tem esse erro de colocar
defeito nas coisas. Não vemos direito e ficamos ensimesmados, vendo torto. Nada
parece se conciliar. Tudo nos faz mal e não conseguimos parar sentados.
Mal começamos algo, já o queremos
acabado. Se não vivesse tão ao pé de Bentinho, não poderia conviver com ele
todos os dias.
Crescemos juntos, como árvores
geminadas. Agora nossos braços se alongam e nos aproximamos. Não há nada, nem
ninguém que possa nos impedir de ficarmos juntos, como não há nada nem ninguém
que nos impeça de nos casar.
Tudo depende determinantemente de nossa
vontade, e somente a nossa vontade deve ser obedecida, e esta é a vontade de
Deus, senão, por que nos colocaria um ao pé do outro, se fosse para nos
separar?
18/04/2013
– 2h25
CAPÍTULO XIV
A emoção era doce e nova, mas a causa dela fugia-me,
sem que eu a buscasse nem suspeitasse.
Capítulo XII (Na
varanda)
Despertei hoje de um sonho: Bentinho e
eu fazíamos coisas fantásticas, como ir até a lua e retornar, e dar voltas à Terra,
como dois pássaros enormes. Depois pousávamos e descansávamos um pouco antes de
tornar a voar.
Ele me diz que meus sonhos são mais
bonitos que os dele e eu digo que não. Aí me diz que o sonho é tão bonito como
quem o sonha, então encabulo.
Nesse sonho, eu o via num jardim de uma
grande casa encorpada. Eu não sei onde fica, mas em torno dela havia árvores e
um gramado extenso, e corríamos por toda parte.
Há um lugar de encantamento nos sonhos,
como nas lendas, que se desmancha no ar. Há um lugar para os mitos, para as histórias
contadas antes de dormir, e os contos de fadas. Tudo desaparece ao abrirmos os
olhos. Mas o lugar dos sonhos permanece intacto, mesmo depois que se desfaz.
Às vezes, sonhar dá a impressão de
termos viajado para outro lugar, e que queremos ficar lá. Quando o sonho acaba,
nem temos tempo de recolher tudo que encontramos ali. Os objetos e as pessoas desaparecem
e acordamos na cama, entre lençóis e travesseiros.
A penumbra do quarto ajuda-nos a lembrar
o sonho. E o sonho dura ainda alguns segundos, de olhos abertos, tentando fixar
as imagens que se apagam. Mas, uma vez que se abra a janela, a luz do sol
desmancha as sombras, e colocamos os pés novamente na realidade, deixando o
sonho para outro dia, outra noite em que voltamos a sonhar.
18/04/2013
– 12h02
CAPÍTULO XV
Sábado? Ah! Sim! Sim! Peça à mamãe que me mande
buscar sábado! Sábado! Este sábado, não? Que me mande buscar sem falta.
Capítulo LXII
(Uma ponta de Iago)
Há dias não leio nada, nada faço, nem
falo. Estou cabisbaixa e taciturna, como se me tivessem arrancado o sol.
Muda, não dou pela hora, e tudo que me dizem não faz diferença. Tudo que me
importa é quando Bentinho vem visitar a mãe aos sábados.
Sábado será dia de muita luz e cantar de
pássaros. Todas as nuvens terão se dissipado e saberei que ele estará aqui no
momento em que pisar na soleira da porta. Ele virá me ver, certamente, pois não
poderei sair correndo para vê-lo. Ou poderei?
Já me chamam descabeçada por tantas
coisas, claro que por esta também. Como pode uma moça como eu correr assim por
qualquer motivo? Qualquer motivo, não. O motivo. O motivo de minhas insônias e
enxaquecas. A razão para os meus destemperos e nevralgias. Tudo me irrita,
assim que é falado. Nada me consola ou conforta. Levaram para longe a razão dos
meus brinquedos e nada o substitui.
Quem sou eu sem Bentinho? Como posso viver
um dia sequer sem vê-lo? Ele partiu para o seminário e lá está fechado como um
prisioneiro. Queria soltá-lo, libertá-lo de sua clausura. Que medo perdê-lo
para sempre! Que medo de nunca mais tê-lo por perto! Mas eis que ele volta por
alguns dias neste sábado, então tudo se ilumina e torna a brilhar como antes. Como
nas juras que trocamos, como nos beijos que inauguramos, como nas mãos que não
se soltavam por nada antes da partida.
Que emoção viver tudo isso pela primeira
vez! Que emoção esperar por ele! Bentinho é o anjo que nasceu para mim,
como sou a estrela que nasceu para ele, e tudo se confunde de repente como
casca e noz, fruta e pão, açúcar e mel. Não sou mais eu mesma desde que ele se
foi, e só serei eu de novo quando ele voltar definitivamente.
20/04/2013
– 13h05
CAPÍTULO XVI
Capitu
ia agora entrando na alma de minha mãe.
Capítulo LXVI
(Intimidade)
“Seremos felizes!”, eu disse a Bentinho.
Pronunciei as palavras que me saltaram à boca como eu as senti. Não pensei em
nada, senão na felicidade imaginada. Não pensei em outra coisa, senão em estar
com ele depois do café da manhã em nossa casa.
Nossa casa! Como esperava que isso se
concretizasse. Um sonho maior que eu mesma. A vida abre caminhos cheios de
curvas e atalhos, que precisamos tecer um longo tapete para atravessá-la. Os
caminhos são passagens por lugares perigosíssimos. Nossos maiores segredos iam caindo
ao longo do caminho.
Minha devoção não tinha tamanho. Cuidava
da mãe de Bentinho como se fora minha própria mãe. Queria-a boa, recuperada,
restabelecida de pronto, para dedicar-se a seu filho amado. Falávamos as duas
sobre ele sem cessar. A coisa que eu mais queria era que me visse como alguém
indispensável a ela e, por conseguinte, a ele também.
Ah, a vida nos pede mais que desculpas
para justificar a nossa presença. Cresci ao pé deles e isso devia valer-me de alguma
coisa. Eu não era qualquer moça, mas aquela que crescera ao lado dele, como
irmã, como prima, como amiga, assim como ela me via agora.
Bentinho entendia meu esforço em ser
boa. “Na vida, há dessas semelhanças assim esquisitas”, dizia ele. Ele ia e
voltava como um tonto, sem querer se separar de mim. Eu ia e voltava como uma
tonta, sem querer arredar pé dele. E tudo servia de escusa para me ver. E todas
as desculpas me serviam para poder vê-lo. Seríamos eternamente inseparáveis.
27/04/2013
– 21h50
CAPÍTULO XVII
Venho explicar-te que tive tais ciúmes pelo que
podia estar na cabeça de minha mulher, não fora ou acima dela.
Capítulo CVII
(Ciúmes do mar)
O ciúme é o inimigo mais cruel. De todas
as desconfianças, a incerteza no amor conduz ao próprio cadafalso. O que dizer
das meias palavras, dos olhares baixos, dos gestos dissimulados, do modo de
falar murmurado, sem encarar o outro, como se não tivesse nada a temer?
As suspeitas corroem por dentro as
estátuas mais bem esculpidas. E quando se vê, esboroam-se como terra infestada
por cupins. O mal que o medo causa só se compara à perda irremediável diante do
cataclismo. Todas as palavras de ternura se desfazem diante da irrefutável
certeza da dúvida. O que não disse que queria ter dito? O que pensou que não
foi manifesto? O que fiz para levantar tal suspeita?
Por mais que jurasse amor eterno, minhas
promessas nunca alçarão voo sob nuvens tão espessas do temor de me perder. Por
mais que me desdobre em carinhos, sair impune de uma acusação indigna é tão
incerto quanto caminhar sobre gelo fino. Meus pés só me levariam ao fundo.
Se eu não puder dissipar todos esses
temores, não serei capaz de manter um casamento feliz. Tudo que eu disser será
usado contra mim. Tudo que eu fizer será aplicado para me acusar, mesmo sem eu ter
feito nada.
As juras de amor desfazem-se no ciúme,
pois não é mais o amor que ama e, sim, a mente que não sabe o que o coração
sente. Se meu amor fosse eterno, por certo sempre o amaria. Mas, se ele o
corrompe por ciúmes, deita fora todos os frutos que colhemos juntos, e disso
nada se aproveita. Não sei como o amor ama, mas se ama, confia. E se não confia,
não amará mais. Aí saberei que não era amor.
11/05/2013
– 15h27
CAPÍTULO XVIII
A verdade é que fiquei mais amigo de Capitu, se era
possível, ela ainda mais meiga, o ar mais brando, as noites mais claras, e Deus
mais Deus.
Capítulo CVII
(Ciúmes do mar)
Minhas súplicas, eu as fazia,
entremeadas de orações à Virgem Maria e aos santos misturadas, tanto na missa
quanto em casa. Rezava como se a vida passasse por entre meus dedos pelas
contas de um rosário. O missal aberto sobre a cama, o bordado deixado pelo
meio. Meu quarto era o oratório para a felicidade. Ali eu rezava todos os dias
para que logo terminasse aquela longa espera.
Para tudo, eu tinha de esperar. Esperar
crescer, esperar Bentinho sair do seminário, esperar que terminasse seus
estudos, esperar o sábado, esperar o dia do nosso casamento. Tudo era espera e
passava tempo mais a esperar do que a fazer o que quer que fosse.
Minha missão era tornar as esperas mais
suportáveis. Suportáveis para mim e para ele. E não deixar nada interferir em sua
alegria. Talvez eu o deixasse contente demais, o atendesse demais, e por isso
fosse tão exigente comigo. Um pouco de dúvida não faz mal, pois certezas demais
o tornariam muito confiante.
Eu nada entendia senão dos meus deveres,
como mulher, esposa e companheira. A vida não parece entreter nada mais senão o
sabor do vaivém das pessoas entre um dia e outro, uma nova leitura, uma nova
música ao piano, uma nova peça de teatro. Há dúvidas que não se podem revelar.
Há sobressaltos que não se podem demonstrar. A dignidade está justamente em
superar os percalços com altivez.
Cultivei minha vida para ser perfeita.
Aos amigos, minha mãe, meu pai, aos vizinhos e parentes. A todos, devo minha
total afeição. E a Bentinho, cujos encantos sempre me cativaram, devoto minha
total reverência, por ser o amor que tanto almejei. Dele recebi o mais completo
carinho, mesmo pontilhado de dúvidas. Mas quem não as tem? Tudo que fiz foi
protegê-lo, mesmo que o protegesse demais. Cometi meus excessos. E sei que por
eles poderei um dia ser mal interpretada.
Às mulheres, resta somente a honra, pois
nada lhe é mais importante. Elas não são iguais aos homens, pois estes sabem aonde
vão. A nós, restou um fio de ouro com que bordamos nosso nome. O meu escrevi
num lenço: Capitu. E por ele serei lembrada.
11/05/2013
– 16h12
CAPÍTULO XIX
Capitu
é um anjo!
Capítulo CVI
(Dez libras esterlinas)
Passei a vida a esperar Bentinho. A toda
hora me virava, esperando vê-lo, pois ele poderia surgir a qualquer momento.
Bentinho era imprevisível, sempre a me espreitar e me olhar de lado. Eu poderia
estar bordando, que encontrava razões para desconfiança.
Os ciúmes de Bentinho eram todos infundados.
Ora porque me penteei de outro modo, ora porque me vesti daquele jeito, sempre
inventava algo não dito antes, mas toda vez estava à caça de motivos para suas
suspeitas e me encarava para decifrar nos meus olhos se eu estava mentindo.
Nunca! Nunca menti uma vez que fosse! Nunca usei o santo nome em vão. Jamais
pedi a intervenção divina para algo que não fosse justo.
Sempre estive, penitente e sofredora, à
mercê da clemência de quem eu mais amava. E quem eu amava? Bentinho, oras, por
ser meu semelhante mais próximo, meu igual sem precedente, aquele que me
auscultava as palavras antes de eu conseguir dizê-las, e as dúvidas que suscitei
em seu coração foram todas injustas, e pedi-lhe perdão sem ter pecado.
Meu amor era inquestionável. A ele,
servi com total devoção. Mas sabia que levantava suspeitas por se deixar
emprenhar pelos ouvidos. Por várias vezes alimentou dúvidas sem fundamento e,
quanto mais eu tentasse dissuadi-lo, menos se convencia.
Bentinho era insuportável. Quanto mais
paciência me pedia, menos eu tinha, e mais aspirava abandoná-lo. Mas, como
deixar quem eu mais amava? Um dia, haveria de convencê-lo: meu amor por ele
estava acima de tudo.
21/05/2013
– 4h26
CAPÍTULO XX
Só
Capitu, amparando a viúva, parecia vencer-se a si mesma.
Capítulo CXXIII
(Olhos de ressaca)
Os sentimentos são os primeiros olhos.
Tudo que vemos passa pelo que sentimos. Até deixamos de ver, se não gostamos.
Ou vemos demais, se estamos ansiosos. Ver não tem nada com o que acontece.
Porque tudo que vemos pode nos iludir.
Somos testemunhas de nós mesmos. E
aquilo que pensamos passa na frente dos fatos. Nossas expectativas nos
suplantam. O que esperamos que aconteça, torna-se nosso objetivo, e deixamos de
observar os detalhes mais importantes.
O que é visto afinal, vem filtrado pelo
nosso olhar, que deturpa o que vê. Um suspiro é só um suspiro, ou quer dizer
outra coisa? Um olhar de soslaio indica reprovação? As palavras que não dizemos
transparecem em nosso rosto?
Eu me comportava da melhor maneira,
desde o modo de me vestir, onde colocava as mãos. Uma moça deve cuidar
principalmente das mãos. Os homens não a julgam pelo que ela diz e, sim, como
se movimenta. As palavras são tolas para eles. Diga o que disser, será sempre
uma mulher.
Assim, os fatos sobrepõem-se aos
sentimentos e os sentimentos aos fatos, porque, ao narrá-los, vamos repeti-los
conforme nossas impressões. O que é fato não é o que pensamos. E nosso
pensamento se destaca do fato como outra história agregada a ele.
Quais eram os fatos para Bentinho? Quais
eram os fatos para mim? Para ele, tudo que satisfizesse a sua vontade. Para
mim, tudo que atendesse a vontade dele. Note-se que eu abria mão do que queria
só para poder estar com ele.
Eu não tinha preferências. Preferia o
que fosse bom para ambos. E meu desprendimento me exigia total atenção. A fatos
e pensamentos, pois pensar não é uma realidade, e a realidade pode estar bem
distante do que se pensa.
21/05/2013
– 18h50
CAPÍTULO XXI
José
Dias amava os superlativos.
Capítulo IV (Um
dever amaríssimo!)
Gentilíssimo.
Amabilíssimo.
Havia nele um exagero de superlativos. Tudo havia de ser boníssimo, belíssimo, generosíssimo. Os gestos largos, a boca
sempre crispada, num esgar de riso morfético. O que o agregado José Dias dizia
era elevado à quinquagésima potência. E Bentinho, aturdido, respondia que, sim,
sim, claro, um “dever amaríssimo”.
Tudo que ele dizia soava falso, embora fosse
carregado de verdades da mais alta importância. Cada coisa estava acondicionada
ao seu estado natural para ser mais bem apreciada. Dona Glória, mãe de Bentinho,
assentia, tão aturdida quanto o filho. Felicíssimo,
contentíssimo.
Tio Cosme e prima Justina estavam sempre
às turras, às voltas com suas mesmices. E José Dias a aparar as arestas, indo buscar
o tabuleiro de gamão. Bentinho refugiava-se em minha casa para não ser
perseguido pelos “mais velhos”. As obrigações o maçavam. Quando teve de partir
para o seminário, a vida distanciou-se da que tínhamos. Nunca mais voltou a ser
o que era.
Os mais velhos estavam longe de nós, até
ficarmos um pouco mais velhos, e nos aproximarmos de como eram quando éramos
mais jovens. Crescer tem muito de adquirir a experiência dos antigos. E passar
a fazê-lo do nosso modo. A vida tem essa forma de refazer o que foi feito para
passá-lo adiante.
Não me casei apenas para ser feliz. A
felicidade era uma obrigação. O que viesse por acréscimo seria bem-vindo. Os
filhos, por exemplo, são a bênção de um casal. Significava que o casamento havia
vingado. E teríamos cumprido nosso dever à risca. Mas nunca se deve esperar
demais.
Pode ser que não nos seja dada a chance
de fazer o que pretendíamos, e as escolhas precisem ser outras. Então, o que
sonhamos desde criança continua sendo um sonho e, nossa vida, outro sonho
vivido de olhos abertos.
22/05/2013
– 1h12
CAPÍTULO XXII
Nem
os mortos escapam aos seus ciúmes!
Capítulo
CXXXVIII (Capitu que entra)
Bentinho era o reflexo do meu amor. E
meu filho se refletia no amor que sentia por ele. Como um prisma de muitas
faces, o amor se multiplica como a luz que atravessa o diamante, fulgindo para
todo lado. Um filho nos põe nos braços o homem que mais amamos, para cuidar
dele como se fosse de novo pequeno. E a ele devotamos o maior amor, pois não há
amor maior do que o dedicado a um filho.
Ama-se o filho como uma extensão de seu
pai. A mulher amará nele o mesmo que amou no homem. E o marido se espelhará no
filho, e este no pai, por estarem ligados pela mesma carne, através da mulher
que o concebeu. A mulher é o elo. Sem ela, não haveria o amor paternal. E o
filho está apegado ao pai como ao seu espelho.
Perder um filho não é menos que perder a
honra. Mas tê-lo apesar da honra perdida é mais do que amor. É transcendência.
Transcendemos pelos filhos. E o amor nos eleva à condição de santas. “Quase uma
santa”, dizia Bentinho de sua mãe. As mães são as santas que colocam em nossas
vidas. Os pais são os esteios. Sustentam-nos, mesmo quando não estão presentes.
E ser mãe tem a ver com a santidade que nos emprestam.
Assim ponderei, ao fim da minha vida:
que toda transcendência que atingi ao amar um único homem e conceber dele um
único filho só me levaria à unidade do amor que criei para mim em torno da
mesma pessoa. O filho era o pai e o pai era o filho. E esse amor insuperável
não poderia ser transcendido senão pelo meu amor instransponível de mãe.
Deixar Bentinho em meio às suas dúvidas
foi o mesmo que abandonar um navio em meio à tormenta. Arremessei-me ao mar na
certeza de que nada fiz para ofendê-lo. O que ele viu, só ele via. O que pressentiu,
só ele vislumbrou. De todas as coisas, esta foi a única a que me recusei:
admitir o erro sem o haver cometido. Fazemos as maiores concessões ao amor, mas
só uma nos é proibida: negar o próprio amor.
Ezequiel era extensão de Bentinho, como
eu, a extensão de seu amor, o mais puro, o primeiro, que nutriu a nossa
infância, a mesma que adornava os cabelos de meu filho. Ele cresceu, tornou-se
homem como o pai e partiu. Despediu-se de mim sem remorso, como vivi ao lado de
Bentinho, sem culpa, sem mágoa ou atropelo.
Fiz tudo que o amor permitiu. E o que
não me permitia, consegui à custa de muito carinho. Minha vida foi abençoada,
pois tive tudo que mais queria: marido, filho, casa. Que mais quer uma mulher
na flor de seus anos? A felicidade tem desses disfarces: faz parecer abjeto o
que um dia foi desejado. E o amor infinito cobriu meus olhos para que eu só
visse a perfeição.
22/05/2013
– 2h30
SOBRE
DOM CASMURRO
Dom
Casmurro
é o sétimo romance publicado por Machado de Assis e o terceiro da sua chamada
“segunda fase” ou “fase madura”, que teria começado com a publicação de Memórias póstumas de Brás Cubas (1880) e
prosseguido com Quincas Borba (1891).
Diferentemente
dos romances anteriores, Dom Casmurro
não será dado a público em folhetins, mas diretamente na forma de livro e
parece ter constituído a principal atividade do escritor entre 1896 e 1899.
Datado de 1899,
mas posto à venda de fato no começo de 1900, o livro teve uma recepção de
público muito boa. Esgotando-se rapidamente os dois mil exemplares da primeira
edição, uma segunda foi feita já em abril do mesmo ano.
Ao longo dos
anos, porém, sem que decaísse no gosto público, Dom Casmurro passaria a ser o livro machadiano que maior atenção
crítica irá receber, no Brasil e no exterior. E passaria a ser talvez o texto
mais privilegiado nas discussões sobre o sentido geral da obra machadiana e
sobre as formas mais adequadas de leitura.
A história da
recepção crítica do livro traz muitos elementos para uma reflexão sobre as
condições da leitura literária. Além disso, é rica em episódios decisivos para
a imagem que hoje temos de Machado, de modo que vale a pena retraçá-la, pois
permite compor uma espécie de romance da crítica, no qual boa parte do que há a
dizer sobre o livro estará sendo dito, de uma forma ou de outra.
[Da apresentação e ensaio crítico de
Paulo Franchetti para a 2ª edição de Dom
Casmurro, publicada pela Ateliê Editorial, 2011.]
Thereza
Christina Rocque da Motta nasceu em 10 de julho de 1957, é poeta, editora e
tradutora. Formou-se em Direito em 1981. Publicou Relógio de sol (1980), Papel arroz (1981), Joio & trigo (1982, 1983, 2004), Areal (1995), Sabbath (1998), Alba (2001), Chiaroscuro – Poems in the dark (2002), Lilacs/Lilases (2003), Rios (2003),
Marco Polo e a Princesa Azul (2008), O mais puro amor de Abelardo e Heloísa
(2009), Futebol e mais nada: Um time de
poemas (2010), A vida dos livros
(2010), Odysseus & O livro de Pandora
(2012), Breve anunciação (poema
dramático, 2013), As liras de Marília
(poema histórico, 2103) e o pôster-poema “Décima
lua” (1983). Traduziu A sereia e o monge, de Sue Monk Kidd (Prestígio, 2006), Marley
& Eu, de John Grogan (Ediouro, 2006),
A dança dos sonhos, de Michael
Jackson (2011), 44 Sonetos
escolhidos (2006) e 154 Sonetos (2009),
de William Shakespeare e O Unicórnio e
outros poemas, de Anne Morrow Lindbergh (a sair). Tomou parte da Conference
on World Affairs, na Universidade do
Colorado, Boulder, EUA, em 2002, 2003 e
2005. É membro da Academia Brasileira de Poesia, de Petrópolis, e do PEN Clube
do Brasil. Coordena o evento Ponte de
Versos há 15 anos. Fundou a Ibis Libris em
2000.